Leonor Freitas jamais imaginou fazer vinho. Até aos 40 anos entregou-se a outras vidas, num mundo ligado à área da Segurança Social. O falecimento do pai e um pedido da mãe para que voltasse a casa levaram-na a fazer tábua rasa: do percurso até à data e de todos os conhecimentos conquistados. Chegou a uma humilde casa agrícola, como recorda, com o saber de que nada sabia. O que a levou a procurar precisamente isso, quem soubesse fazer e a ensinasse.

Começou devagar, a produzir apenas vinho a granel e a fornecer adegas da península de Setúbal. Até que chegou um ano em que um dos seus melhores clientes, por ter produção suficiente, não precisou de comprar o vinho a Ermelinda. Ao ver-se com tantos litros por vender, encontrou o mote perfeito para começar a sua própria marca… Contratou um enólogo, investiu na terra e no plantio de vinhas, para além de Fernão Pires e Castelão, e começou a dar provas, em particular de que era a carta certa na hora de escolher um vinho que respondesse por uma boa relação qualidade-preço.

Hoje, a Casa Ermelinda Freitas responde por 40 milhões de euros de facturação anual, 8 milhões de garrafas produzidas, 500 hectares de vinha própria, tem parceria com 136 viticultores e está presente em mais de 30 mercados externos… Leonor Freitas, a grande responsável e impulsionadora de tudo isto – e de uma casa que desde há quatro gerações se mantém na família e no feminino –, continua a falar com alma e emoção do passado e do presente, consciente e segura do futuro. Diz que sempre quis dar resposta ao mercado e ir ao encontro dos consumidores. Porque, confere, são eles que a ajudam a fazer a marca. «É ao consumidor que eu devo tudo isto.» E tanto deve que continuou a sonhar… para além de Setúbal. Por isso, em 2018, avançou para os Vinhos Verdes com a compra da Quinta do Minho e, logo depois, seguiu para o seu grande sonho, o Douro, após a aquisição da Quinta de Canivães em Foz Côa.

Para já, é por aqui que ficará. Mas, sempre, com a certeza que «é muito importante criar marca e saber cuidar dela, dar- -lhe continuidade, dar-lhe sustentabilidade.» Ou não confirmasse, ainda: «Aquilo que a Casa Ermelinda fez foi dar a cara, que foi a minha, pela qualidade.»

Desde 1920 que a história da Casa Ermelinda Freitas se tem vindo a escrever em família e no feminino. Quando recebeu todo este legado, foi fácil assumir-se e afirmar a marca – e a sua marca – num mundo que na altura ainda era tão escrito no masculino?

É verdade, vim para a Casa Ermelinda Freitas há 30 anos. Embora houvesse toda a história da minha bisavó e avó, ambas mulheres muito fortes, na altura a Casa Ermelinda Freitas era apenas uma casa agrícola. Foi crescendo humildemente.

Eu saí, estudei, fui das primeiras mulheres da família a ter um curso superior, porque a família queria uma vida melhor para mim. Fernando Pó está a 50 km de Lisboa, mas é um lugarejo muito fechado, não tinha luz eléctrica, não tinha água canalizada, não tinha estrada senão de terra batida. Eu saí e acabei por tirar um curso completamente diferente, na área do Serviço Social.

E acabou mesmo por trabalhar na Segurança Social!

E fiz coisas que também gostei muito, até em relação ao alcoolismo… Quando saí, era a coordenadora da educação para a saúde no distrito. A minha mãe, que era a dona Ermelinda – a verdadeira dona Ermelinda, nome que todos me chamam e de que gosto porque acho que é uma homenagem à minha mãe –, pediu-me para regressar quando o meu pai faleceu. Resolvi deixar o meu trabalho e ir ver se conseguia, pelo menos, não vender o que tínhamos. Nunca me desliguei da minha infância, da minha família, do meu mundo rural, e fui para ajudar a minha mãe. Mas pouco ou nada sabia.

Como é que foi o seu início? Foi aprender com quem sabe, e foi uma viagem a Bordéus que a fez ter a certeza que era por ali que queria seguir, não foi?

De facto, fui muito motivada para Bordéus. A minha mãe tinha muita intuição para o negócio da família, mas nunca tinha feito nada que fosse em termos de negócio, porque estava sempre por trás do meu pai. Por isso, aquilo não teria continuação só com ela. Eu fui para dar continuidade. Na altura, tínhamos 60 hectares de vinha, uma adega tradicional.

Quando cheguei, tive desde logo noção de uma coisa e que era que não sabia nada. Por isso, fui procurar pessoas que sabiam. Na altura, percebi que toda a gente ia a Bordéus. Eu só vendia vinho a granel e diziam-me que aquilo não era para mim, o que me deu ainda mais vontade de ir. Pedi ao meu marido para tirar dois ou três dias de férias e ir comigo. Fomos num carro, num Clio de dois lugares, sem ar condicionado. Fomos a conduzir sem parar, um de cada vez. Quando lá chegámos, percebi que aquilo era uma autêntica valorização do vinho, uma autêntica consciência do que era o produto, e que era visto como uma jóia. Fiquei maravilhada! Nessa visita encontrei um primo, acompanhado de um amigo que hoje é o meu enólogo mas, na altura, tinha 20 e poucos anos e tinha acabado o curso há pouco tempo. A verdade é que vim de lá com duas mudanças muito grandes na minha cabeça: que tinha que fazer uma adega nova e que precisava de valorizar aquilo que tinha, que fazer marcas, que criar marca. Percebi que era importantíssimo criar marca e decidi convidar o Jaime Quendera para ser o enólogo…

Principalmente quando teve um problema com uma venda de vinho a granel!

É verdade. Havia uma empresa que durante vários anos nos comprou vinho a granel. Até que um ano não precisou do vinho e disse-me que não ia comprar. É assim que começo. Acabo por fazer primeiro uma coisa que, na altura, não era muito considerada, que foi o bag-in-box. É assim que tudo nasce. Começámos todos a encher bag-in-box, comecei a vender e as pessoas notaram a diferença da qualidade.

Olhando para trás, diria que essa foi uma das grandes decisões que lhe ditou o caminho que percorreu até hoje?

Foi, porque a marca, fazer marca, criar marca, é muito importante. Nós éramos completamente anónimos. A Casa Ermelinda Freitas só começou a ser conhecida quando me tornei a Dona Ermelinda… É muito importante criar marca e saber cuidar dela, dar- -lhe continuidade, dar-lhe sustentabilidade. Aquilo que a Casa Ermelinda fez foi dar a cara, que foi a minha, pela qualidade. O que nós queremos dizer é que todo o nosso vinho, no patamar em que está, tem qualidade, é a melhor opção numa relação qualidade-preço. Ainda hoje o bag-in-box é importante, mas foi ultrapassado por muitas marcas que, entretanto, criámos, sendo que logo no início ganhámos uma medalha de ouro com o vinho Terras do Pó. Depois disso começámos a plantar castas, porque só tinha Castelão e Fernão Pires, que percebi que não eram conhecidas. Foi assim que comecei a plantar, comecei pela Touriga, e hoje tenho 31 castas. Também desenvolvemos o enoturismo.

Ou seja, continua sempre a investir e a tentar fazer diferente! Começou com 60 hectares de vinha, hoje tem mais de 500 que respondem por 40 milhões de litros de produção anual… Alguma vez imaginou que ia chegar a este patamar e continuar a crescer? Em particular, agora, como que em contraciclo ao mercado?

Sim, funcionei sempre um pouco em contraciclo, mas nunca pensei chegar aqui. Mas, a verdade é que sempre estive atenta, quis sempre dar resposta ao mercado e ir ao encontro do consumidor. São eles que me ajudam a fazer a marca, é ao consumidor que eu devo tudo isto. Quando tinha 20 anos, se me dissessem que eu tinha que ir para Fernando Pó, eu diria, não vou. Mas quando fui tinha 40, tinha outra maturidade e foi ali que me reencontrei. O vinho é um produto que é muito mais do que isso, entre o lado social, a economia, a família, o afecto.

É um produto com alma!

Exactamente, e todos os anos é diferente. Agradeço todos os dias ter saído de uma vida calma para ir para um turbilhão, que me tem trazido algumas preocupações.

Recordo-me quando dizia que tinha o sonho de ir para o Douro. Mas como, entretanto, não conseguia comprar nada no Douro, em 2018 avançou para os Vinhos Verdes, e depois acabou a investir também numa quinta no Douro!

É verdade. Desde que estou no sector e fiz uma visita ao Douro, emocionei-me imenso, porque sabemos o que é a dificuldade de tratar uma vinha em terreno plano, mas quando cheguei ao Douro e vi o que é trabalhar aqueles terrenos, trabalhar aqueles socalcos, vi a maravilha do contraste entre o rio e a vinha, fiquei completamente emocionada e com o sonho de ter um pouco daquilo. Ainda fui a alguns leilões, mas não conseguia comprar, até porque tenho sempre grandes investimentos, e só tenho dinheiro do vinho para o vinho. O que no Douro me ofereciam era muito caro para as minhas possibilidades e já estava praticamente a desistir da ideia.

Entretanto, recebi um telefonema da parte da Quinta do Minho, em Póvoa de Lanhoso, a perguntar se estaria interessada em comprar a adega que era nos Vinhos Verdes. Lembro- -me perfeitamente que, sentada na minha secretária, dei por mim a pensar “já que não compro no Douro, porque não?”. Fui fazer uma visita, percebi que era um vinho diferenciador do que tínhamos, que a região também era bonita e que era uma hipótese. Foi assim que fizemos o negócio. Só que entre o negócio e a escritura, nesse espaço de tempo, apareceu- me uma Quinta no Douro, em Foz Côa, que ia precisamente ao encontro daquilo com que tinha sonhado. Tem 900 metros de rio, tudo em socalcos, uma vista maravilhosa no alto do Douro, uma vinha linda, uvas espectaculares, e acabei por comprar. Só pensava assim, “quem não tem dinheiro para uma, compra duas!”.

Foi o caso. Mas aquilo continua a ser, de facto, um sonho. Continua a ser difícil, ainda não se rentabiliza ela própria, mas eu vou lá e fico encantada sempre. Vai necessitar de investimentos, nomeadamente numa adega. Quando se acredita num sonho, ele acontece.

Como é que se repartem os actuais 40 milhões de euros de facturação anual?

Os 40 milhões é só na península de Setúbal. A empresa Ermelinda Vinhos de Portugal ainda factura relativamente pouco, por volta de dois milhões de euros.

E perspectiva entrar em alguma outra região?

Não, não tenho essa ambição. Estou bem. Acho que é muito difícil entrar em outras regiões. Aprendi. A vida é uma grande lição e esta luta de entrar em outras regiões foi também uma lição para mim. É difícil. Temos sempre muitos investimentos.

A verdade é que o sector do vinho não está a viver os seus melhores dias. Até que ponto é que tem sido aliciada por outros operadores no mercado português para que invista nos seus projectos?

Tem havido muita oferta de várias quintas, de outros projectos, nomeadamente no Douro e no Alentejo. Há, de facto, muita oferta neste momento, mas eu não posso comprar. Aquilo que tenho feito é comprar todas as uvas na nossa região que não tenham compradores. E ajudei, também, no Alentejo. Temos que ter a noção de sector, de ajuda, porque somos um país pequeno, mas de uma riqueza imensa e temos que nos unir.

A sua filha Joana já está na empresa. É a 5.ª geração da família. Será a próxima Ermelinda Freitas?

Vai ser. A família passou-me muitos valores, morais, sociais, de ajuda ao próximo. Esses valores têm sido muito importantes para mim e tenho tentado também passá-los. A minha filha é a grande entusiasta na continuidade da gestão, até porque tirou Gestão. O meu filho também está na Casa Ermelinda Freitas.

Com a transição assegurada, que sonho é que tem, então, para esta sua marca?

O meu grande sonho é que os meus filhos tenham saúde, porque tenho a certeza que a marca vai continuar, vai continuar a dignificar a região da península de Setúbal e de Portugal. Precisamos de marcas que valorizem uma grande região e o País, para que o importador, lá fora, não nos associe só ao barato, mas também à qualidade.

E já está em 30 países!

Neste momento, até mais. Na Europa, estamos em todo o lado, temos um responsável pelos mercados externos, e as pessoas já nos procuram. Já é mais fácil vender. Portanto, sempre que há uma oportunidade, tentamos não a deixar fugir.

Fonte: Marketeer